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segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Muito Chato (conto)

Muito chato, tudo muito chato, minha vida está uma chatice, ela disse, correndo os olhos arregalados à sua volta. Estava visivelmente perturbada e desgostosa. No horizonte o céu assumira a cor do fogo, indicando que logo a noite cairia. Uma mordiscada no quibe, a boca perfeita, lábios desenhados pelo lápis do próprio Deus.
Não acredito mais em você, prosseguiu com um timbre nervoso. Como pude me enganar tanto! Na verdade, não acredito mais em nada, não espero mais nada. Olhei-a no fundo dos olhos verdes, os mais lindos sobre os quais me foi dada à ventura de pousarem os meus e minha voz saiu assim, meio tímida. Precisa deixar de fumar...
Ela ficou furibunda. Ralhou que eu era mestre em mudar de assunto. Nunca ouve o que digo, não me leva a sério, não passa de um canalha, vociferou, mirando-me com quase aversão. Você está equivocada, precisa se acalmar, tornei, já meio arrependido de ter deixado escapar um fonema. Qualquer palavra, fosse qual fosse, só conturbaria tudo. E costumo ser lacônico até para falar. De mais a mais, foi uma imprudência completa dizer que ela estava equivocada.
Nós definitivamente não combinamos, ela insistiu. Como era linda. Mesmo com a carranca de quem está pronta a escalpelar alguém, naquele rosto de traços europeus, possuía uma nobreza ingênita. Os movimentos eram decididos, duros por vezes, mas conseguia manter um aplomb de bailarina, por mais antagônico que isso possa parecer. Fiz a mão sinistra escorregar sobre a mesa e alcancei, timidamente, a carteira de cigarros. Mais de quatro mil e setecentas substâncias tóxicas, murmurei, só para dizer algo.
Homens são todos iguais: egoístas e imaturos. Por que se casam? – inquiriu. Você não tem profundidade nenhuma, não me acrescenta nada, constatou, a franja loira a cair-lhe sobre a testa. Tinha mãos firmes de artista que cria a vida com os pincéis e espátulas, falanges salientes. Ultimamente andava entusiasmada com as rosas e tulipas. Ficou lindo seu trabalho naquela leiteira, tornei, diplomático.
Ocorreu que, por um desses vieses que a vida se nos apresenta, meu tentame em mostrar-me hábil e delicado soou como insolência àqueles ouvidos tentadores e percebi que, se estivéssemos em um local diverso daquele, meu rosto talvez não escapasse ileso. Calamo-nos. Os olhos de esmeraldas estavam marejados. Meus dedos contornavam a xícara lascada. Lascas do que fomos, partículas de mercúrio espalhadas sobre o chão entre os cacos do termômetro, o porta-retratos quebrado, tudo irremediavelmente fendido.
Você é uma caixa fechada, ela deixou escapar. Não era a primeira vez que alguém fazia tal comparação. Certa vez até uma religiosa, de quem se dizia poder sentir as aflições das pessoas para então benzê-las, falou a mesma coisa. Uma caixa fechada. Nunca contestei, ainda que não soubesse de que forma aquilo se me aplica. Será que estou gordo?, pensei. Ela fitou-me de uma maneira que sempre temi, triste, apagada. E partiu. Os pastéis, os pastéis, ainda consegui dizer. Mas só restava um rastro de perfume.

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