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sábado, 15 de outubro de 2011

A mulher


A mulher fez a passagem e sequer havia se dado conta. As últimas lembranças eram as das recusas em série, sequências infindas de nãos e as portas a baterem-lhe a cara.

Vendia cosméticos em domicílio, trabalho que lhe rendeu uma coleção enorme de amizades e bons tostões no decurso dos anos. Houve, então, que as donas de casa, aquelas mulheres gentis sempre prontas a recebê-la e tomar informações sobre os rouges, os pós-de-arroz, batons e esmaltes, foram desaparecendo como por encanto.

Ultimamente, em suas manhãs e tardes, deparava com casas vazias. Agastava os dedos nas campainhas, mas as moradoras não mais atendiam. Onde foram parar? Não raro, a porta era aberta por um homem, que tratava de dispensá-la de pronto, sob a alegação de que sua mulher não se encontrava, estava a trabalhar. Estranhou, mas persistiu até quanto foi possível.

Em um final de tarde, num dia que retornava à casa sem ter vendido ao menos um vidro de esmalte, sentiu-se abater por um desalento incomensurável. Foi quando tudo se deu.

Sentiu o chão faltar, como se seu corpo não tivesse peso e pairasse. Fez a passagem. Não, não foi o desencarne. Atravessou o portal para onde vão os desestimados, os esquecidos, os deslocados, as gentes que perderam as funções. Uma existência paralela, que há aqui, a meu lado, ao seu, sem ocupar o mesmo espaço, mas que a maioria não se dá conta. Por falta de interesse. Ou de tempo. Ou os dois.

A mulher deparou com outras pessoas, uns atônitos tais como ela; outros tantos repetiam gestuais ou executavam trabalhos, aos quais se entregavam quando viviam do outro lado. Estavam lá os braçais que limpavam as ervas das frinchas dos paralelepípedos, os carroceiros que entregavam pão, leite e miúdos de frango, os vendedores de enciclopédias, amoladores de facas e tesouras, ferradores, seleiros, beijueiros, gentes as quais o mundo moderno pôs de lado, sem piedade.

A sua frente, do nada, brotou um engraxate. A seu lado, surgiu um vendedor de raspadinha. Mais adiante, o homem do algodão doce, o sapateiro, a quituteira. A mulher passou a se dar conta de que não avistava mais esses trabalhadores em seu cotidiano de há tempos.

De primeiro, chorou. Tantos haviam desaparecido, sem que sentisse falta, até que ela mesma viesse engrossar a lista. Sentiu saudades de um mundo que deixara de ser. Quanta cegueira. Como não se apercebera que ninguém mais lhe tentava persuadir, à porta, a comprar a Barsa, a coleção de Monteiro Lobato? O que foi feito de tudo? Onde estariam as crianças que passavam pedindo jornais, fios de cobre e garrafas vazias? Até os chamados tipos populares se haviam extinguido!

A mulher lembrou-se de quando as vizinhas se conheciam e travavam conversas sobre as amenidades da vida, entrevistavam-se sobre receitas culinárias, trocavam uma e outra fofoca, e se sabia haver mútua solidariedade caso alguém viesse a carecer. As famílias costumavam fazer juntas suas refeições e sobrava tempo para que todos pusessem a conversa em dia.

A mulher, então, se apercebeu de que os sentimentos mais nobres que podem reservar às pessoas também se haviam volatilizado. Secou as lágrimas e seguiu, entre os desencontrados, a oferecer de longe em longe seus batons.

(Crônica publicada na edição número 1 da Revista do Comércio, do jornal Comércio do Jahu)