Os torós que quase nos fizeram criar mofo, e transformaram várias ruas da cidade em riachos, atentaram contra a eficiência dos ralos da residência onde habita minha família. A cada chuvarada, era um corre-corre danado, porque os bichinhos não davam conta de escoar tamanho volume de água. Corredores com pisos frios, tempos modernos. Às vezes sinto saudades do quintal de minha infância.
O quintal da minha meninice tinha muita terra, grama, um galinheiro ao fundo, um pé de limão-galego, outro de fruta-do-conde, duas frondosas goiabeiras, roseiras e outras tantas plantas ornamentais das quais os nomes me escapam à lembrança. Havia também moitas de erva-cidreira, usadas por minha mãe, dona Therezinha, no preparo de chás deliciosos, que serviam para combater resfriados, febres e dores de cabeça.
Bem-te-vis, pardais, coleirinhas e anus se banqueteavam a trecheio com as frutas, taturanas, centopéias, minhocas, tatuzinhos, e um sem-número de pequenos insetos que viviam no gramado. De quando em vez, aparecia um e outro sapo para fazer uma boquinha, deixando maluca nossa brava fox paulistinha, Tuca, que era exímia caçadora de camundongos, batráquios e lagartixas.
Tinham as goiabeiras duas variedades de frutas: a goiaba branca e a vermelha, comumente a preferida entre a criançada. Os galhos daquelas árvores, em autêntico exercício de imaginação, já foram cipoal amazônico, o Monte Everest, castelo medieval e até um planeta inóspito. Para as crianças, tudo é possível.
Certa vez, defendendo o Forte Álamo lado a lado a Davy Crockett, espalmei acidentalmente uma colméia e quase todo o cortiço melífero saiu em meu encalço, trazendo-me de volta à realidade com doídas ferroadas, que me fizeram despencar dos galhos feito goiaba podre. Era a vitória dos mexicanos.
As goiabeiras eram também meu refúgio. Toda vez em que aparecia em casa o farmacêutico – o que significava invariavelmente ter de arriar as calças para pungentes injeções -, eu trepava no mais alto dos galhos e só descia ao cair da noite. Com exceção de Maria Heloísa, prima que tinha uma invejável agilidade, nada e ninguém conseguia me tirar de lá.
No quintal havia um quarador onde se punha a roupa a alvejar. Quando não estava servindo a esse propósito, costumava utilizá-lo como banca para as rinhas de saúvas ou para minhas experiências químicas. Com produtos escolhidos aleatoriamente na lavanderia, fazia as misturas mais insólitas possíveis, que ora resultavam em um absolutamente nada malcheiroso, ora chegavam a borbulhar, o que era o efeito desejado.
Era também sobre o quarador que me postava como fiel espectador toda vez em que Rita, nossa cozinheira, se aventurava a capturar um frango para o almoço dominical. Lá ia ela bamboleando pra cá, se esquivando de lá, num vai-e-vem entre os arbustos, até conseguir pegar o galináceo arredio. Como a sentença já era conhecida, Rita só fazia era executá-la. Assumindo ares nobres de samurai, esticava o pescoço da ave, conferia o gume da velha faca de cozinha e zás. Golpe certeiro. E eu ficava embasbacado ao ver que, mesmo separado de sua cabeça, o corpo do frango ainda se convulsionava freneticamente.
Creio que os jovens de hoje nunca tenham visto um quarador, nem saibam do que se trata. Mas eles existiram, juro, fui testemunha disso!
Quando chovia, ah, que delícia, o quintal ficava que era um lamaçal só. A criançada ia chafurdar no chão, usar da lama para riscar na face pinturas indígenas, coisas de moleque. Como era bom o cheiro de terra molhada. Água deitando borrifos nas folhas, no gramado, regando as raízes das goiabeiras, alimentando o lençol freático, escoando pelo solo em seu rumo natural, sem cimento, nem ralos.
domingo, 16 de maio de 2010
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